Que a minha Deficiência não seja a tua Motivação!
#Motivação
Opinião

Mafalda Ribeiro assina um texto mensal no MOTIVO, a partir da sua visão e entendimento de pessoa com deficiência motora, a que chamou Acesso Prioritário.
Motivo e motivação são duas palavras relacionadas entre si, mas que não têm o mesmo significado. São complementares. Se o motivo é a razão que dá origem à ação, então a motivação é a força que move a pessoa a realizar essa ação. É, no fundo, o processo psicológico ou a ponte que liga o propósito à atitude. Ter um motivo, uma causa para fazer algo, não chega. É necessário ter uma força interior, ou seja, a motivação, para se pôr em movimento. A par disso, de nada serve estar motivado, ter essa força, se não existir um motivo ou uma razão que justifique avançar.
Vivemos num tempo em que as pessoas lêem livros, fazem cursos, vêem talks online e vão cada vez mais assistir a palestras motivacionais, à procura de receitas, lições ou estratégias para saber como ir de A a B, de preferência sem dar muito trabalho, e atingirem excelentes resultados. Não vou criticar quem o faz, como emissor ou recetor, porque hoje em dia há oradores e públicos para todos os gostos e feitios. Porém, vou retratar-me, porque sei que, com a minha cadeira de rodas, facilmente posso pisar o risco que delimita o meu propósito. E, por causa disso, ser entendida como alguém que faz o que faz, profissionalmente, para ser aplaudida como um grande exemplo de superação! A linha é ténue, mas a minha esperança é que as palavras tragam claridade à leitura que fazem de mim.
Enquanto palestrante (public speaker, se preferirem) sei que tenho acesso prioritário à plateia que tenho à minha frente, em matéria de atenção. Não preciso de estudar ou aplicar as teorias dos primeiros sete segundos, basta-me aparecer. Talvez esta seja mesmo a única ocasião em que me aproveito da minha deficiência visível. Porque, depois, é a história que vou contar que tem de ter poder, nunca o meu ego disfarçado de coitadismo. A mensagem é que tem de ser o centro, não a mensageira. Ora, se chegar aos outros facilmente é uma mais-valia minha, e da minha deficiência, já permanecer, na garantia de que eles entendem a mensagem que quero transmitir, é bem mais desafiador.
Sou uma pessoa com uma deficiência motora congénita. Desloco-me numa cadeira de rodas e, segundo o Estado, tenho 95% de incapacidade. Segundo a minha impressão digital, tenho 100% de capacidade para ser exatamente quem sou, pelo valor que possuo enquanto ser humano — e é isso que tantas vezes parece difícil de aceitar para quem olha para mim em cima de um palco. Na maioria dos casos, só me apercebo disso pelo feedback. Quando um desconhecido — quase sempre bem intencionado — transforma o meu simples ato de existir numa espécie de lição de moral para si próprio. Quando alguém me olha com aquele misto de pena, surpresa e inspiração heróica que só quem vive com rodas nos pés conhece. Chamar-me “força da natureza” não é um elogio, é desconforto. Pois há quem apelide de extraordinário o que eu vejo somente como representatividade no ordinário.
Por tudo isto é que, nos últimos anos, se tornou comum transformar pessoas com deficiência em motivational content. Vídeos virais de alguém “a conseguir viver apesar de tudo”. Textos enternecidos sobre como “é impressionante ver a força desta pessoa”. Fotografias partilhadas nas redes sociais com legendas do género: “E tu queixas-te da tua vida?”.
Eu não me exponho, não falo nem escrevo publicamente para ser uma motivação. A minha vida não existe para inspirar a ser mais produtivo. Não acordo de manhã para fazer alguém relativizar os seus problemas. Não enfrento as minhas barreiras pessoais para servir de espelho moral. A minha deficiência não é um palco. É uma condição humana — legítima, complexa, diária — que merece respeito, não romantização. Quando me transformam em motivação, retiram-me humanidade. Reduzem-me a metáfora. Ignoram o contexto, o cansaço, as dores, as burocracias, as exclusões subtis e explícitas que posso estar a atravessar. Reduzem tudo ao espetáculo emocional do “se ela consegue, eu também consigo”. Mas eu não existo publicamente para ser medida de coisa alguma. A minha intenção é que me olhem como uma pessoa. Pessoa inteira. Com desejos, rotinas, frustrações e falhas como qualquer outra. E a minha cadeira de rodas não é uma mascote motivacional, é apenas o que me permite deslocar-me, é um produto de apoio. É o meu corpo a viver de outra maneira, não o lembrete para alguém viver melhor.
E sim, há dias difíceis, menos bons ou irritantes. Há batalhas silenciosas com acessibilidades inexistentes, com decisões políticas ignoradas, com instituições que esquecem, com olhares que me atravessam. Mas nada disto precisa de ser pano de fundo para o teu “gratidão pelo que tenho”. Prefiro que seja pano de fundo para mudanças reais, práticas, estruturais.
Então, o que é que tu podes fazer para honrar a minha existência? Luta por cidades acessíveis. Questiona as barreiras arquitectónicas. Exige inclusão no emprego. Repara quando uma porta não abre, quando um serviço não inclui, quando uma decisão é tomada sem me consultar. Ensina as tuas crianças a ver diversidade sem hierarquia. E, sobretudo, abandona a ideia de que a deficiência é derrota pessoal ou superação obrigatória. A maior parte das coisas que faço, faço porque fazem parte do pacote integral da minha vida. Não é heroísmo. É humanidade. É prosseguir. É viver, não é sobreviver. E viver não é espetáculo, é dádiva. Por isso, se te inspiro — ótimo. Mas que seja porque te reconheces em mim enquanto pessoa, não por causa da minha aparência ou do que me está vedado. Porque somos diferentes, sim, mas não estamos em lados opostos da dignidade. E, se um dia eu puder motivar alguém, não é pela exceção em que me tentam colocar, mas por trazer verdade, bondade e beleza, com a oportunidade igual de ter uma voz. Esse é o meu motivo.
Que a minha deficiência não seja a tua motivação!
Que a minha deficiência seja apenas o motivo para que tu também queiras ser um promotor da inclusão.
E quanto à motivação? Que seja a minha humanidade o que te marca — porque isso, sim, é universal.
Mafalda Ribeiro assina um texto mensal no MOTIVO, a partir da sua visão e entendimento de pessoa com deficiência motora, a que chamou Acesso Prioritário.
Que a minha Deficiência não seja a tua Motivação!
#Motivação
Opinião

Mafalda Ribeiro assina um texto mensal no MOTIVO, a partir da sua visão e entendimento de pessoa com deficiência motora, a que chamou Acesso Prioritário.
Motivo e motivação são duas palavras relacionadas entre si, mas que não têm o mesmo significado. São complementares. Se o motivo é a razão que dá origem à ação, então a motivação é a força que move a pessoa a realizar essa ação. É, no fundo, o processo psicológico ou a ponte que liga o propósito à atitude. Ter um motivo, uma causa para fazer algo, não chega. É necessário ter uma força interior, ou seja, a motivação, para se pôr em movimento. A par disso, de nada serve estar motivado, ter essa força, se não existir um motivo ou uma razão que justifique avançar.
Vivemos num tempo em que as pessoas lêem livros, fazem cursos, vêem talks online e vão cada vez mais assistir a palestras motivacionais, à procura de receitas, lições ou estratégias para saber como ir de A a B, de preferência sem dar muito trabalho, e atingirem excelentes resultados. Não vou criticar quem o faz, como emissor ou recetor, porque hoje em dia há oradores e públicos para todos os gostos e feitios. Porém, vou retratar-me, porque sei que, com a minha cadeira de rodas, facilmente posso pisar o risco que delimita o meu propósito. E, por causa disso, ser entendida como alguém que faz o que faz, profissionalmente, para ser aplaudida como um grande exemplo de superação! A linha é ténue, mas a minha esperança é que as palavras tragam claridade à leitura que fazem de mim.
Enquanto palestrante (public speaker, se preferirem) sei que tenho acesso prioritário à plateia que tenho à minha frente, em matéria de atenção. Não preciso de estudar ou aplicar as teorias dos primeiros sete segundos, basta-me aparecer. Talvez esta seja mesmo a única ocasião em que me aproveito da minha deficiência visível. Porque, depois, é a história que vou contar que tem de ter poder, nunca o meu ego disfarçado de coitadismo. A mensagem é que tem de ser o centro, não a mensageira. Ora, se chegar aos outros facilmente é uma mais-valia minha, e da minha deficiência, já permanecer, na garantia de que eles entendem a mensagem que quero transmitir, é bem mais desafiador.
Sou uma pessoa com uma deficiência motora congénita. Desloco-me numa cadeira de rodas e, segundo o Estado, tenho 95% de incapacidade. Segundo a minha impressão digital, tenho 100% de capacidade para ser exatamente quem sou, pelo valor que possuo enquanto ser humano — e é isso que tantas vezes parece difícil de aceitar para quem olha para mim em cima de um palco. Na maioria dos casos, só me apercebo disso pelo feedback. Quando um desconhecido — quase sempre bem intencionado — transforma o meu simples ato de existir numa espécie de lição de moral para si próprio. Quando alguém me olha com aquele misto de pena, surpresa e inspiração heróica que só quem vive com rodas nos pés conhece. Chamar-me “força da natureza” não é um elogio, é desconforto. Pois há quem apelide de extraordinário o que eu vejo somente como representatividade no ordinário.
Por tudo isto é que, nos últimos anos, se tornou comum transformar pessoas com deficiência em motivational content. Vídeos virais de alguém “a conseguir viver apesar de tudo”. Textos enternecidos sobre como “é impressionante ver a força desta pessoa”. Fotografias partilhadas nas redes sociais com legendas do género: “E tu queixas-te da tua vida?”.
Eu não me exponho, não falo nem escrevo publicamente para ser uma motivação. A minha vida não existe para inspirar a ser mais produtivo. Não acordo de manhã para fazer alguém relativizar os seus problemas. Não enfrento as minhas barreiras pessoais para servir de espelho moral. A minha deficiência não é um palco. É uma condição humana — legítima, complexa, diária — que merece respeito, não romantização. Quando me transformam em motivação, retiram-me humanidade. Reduzem-me a metáfora. Ignoram o contexto, o cansaço, as dores, as burocracias, as exclusões subtis e explícitas que posso estar a atravessar. Reduzem tudo ao espetáculo emocional do “se ela consegue, eu também consigo”. Mas eu não existo publicamente para ser medida de coisa alguma. A minha intenção é que me olhem como uma pessoa. Pessoa inteira. Com desejos, rotinas, frustrações e falhas como qualquer outra. E a minha cadeira de rodas não é uma mascote motivacional, é apenas o que me permite deslocar-me, é um produto de apoio. É o meu corpo a viver de outra maneira, não o lembrete para alguém viver melhor.
E sim, há dias difíceis, menos bons ou irritantes. Há batalhas silenciosas com acessibilidades inexistentes, com decisões políticas ignoradas, com instituições que esquecem, com olhares que me atravessam. Mas nada disto precisa de ser pano de fundo para o teu “gratidão pelo que tenho”. Prefiro que seja pano de fundo para mudanças reais, práticas, estruturais.
Então, o que é que tu podes fazer para honrar a minha existência? Luta por cidades acessíveis. Questiona as barreiras arquitectónicas. Exige inclusão no emprego. Repara quando uma porta não abre, quando um serviço não inclui, quando uma decisão é tomada sem me consultar. Ensina as tuas crianças a ver diversidade sem hierarquia. E, sobretudo, abandona a ideia de que a deficiência é derrota pessoal ou superação obrigatória. A maior parte das coisas que faço, faço porque fazem parte do pacote integral da minha vida. Não é heroísmo. É humanidade. É prosseguir. É viver, não é sobreviver. E viver não é espetáculo, é dádiva. Por isso, se te inspiro — ótimo. Mas que seja porque te reconheces em mim enquanto pessoa, não por causa da minha aparência ou do que me está vedado. Porque somos diferentes, sim, mas não estamos em lados opostos da dignidade. E, se um dia eu puder motivar alguém, não é pela exceção em que me tentam colocar, mas por trazer verdade, bondade e beleza, com a oportunidade igual de ter uma voz. Esse é o meu motivo.
Que a minha deficiência não seja a tua motivação!
Que a minha deficiência seja apenas o motivo para que tu também queiras ser um promotor da inclusão.
E quanto à motivação? Que seja a minha humanidade o que te marca — porque isso, sim, é universal.
Mafalda Ribeiro assina um texto mensal no MOTIVO, a partir da sua visão e entendimento de pessoa com deficiência motora, a que chamou Acesso Prioritário.
Que a minha Deficiência não seja a tua Motivação!
#Motivação
Opinião

Mafalda Ribeiro assina um texto mensal no MOTIVO, a partir da sua visão e entendimento de pessoa com deficiência motora, a que chamou Acesso Prioritário.
Motivo e motivação são duas palavras relacionadas entre si, mas que não têm o mesmo significado. São complementares. Se o motivo é a razão que dá origem à ação, então a motivação é a força que move a pessoa a realizar essa ação. É, no fundo, o processo psicológico ou a ponte que liga o propósito à atitude. Ter um motivo, uma causa para fazer algo, não chega. É necessário ter uma força interior, ou seja, a motivação, para se pôr em movimento. A par disso, de nada serve estar motivado, ter essa força, se não existir um motivo ou uma razão que justifique avançar.
Vivemos num tempo em que as pessoas lêem livros, fazem cursos, vêem talks online e vão cada vez mais assistir a palestras motivacionais, à procura de receitas, lições ou estratégias para saber como ir de A a B, de preferência sem dar muito trabalho, e atingirem excelentes resultados. Não vou criticar quem o faz, como emissor ou recetor, porque hoje em dia há oradores e públicos para todos os gostos e feitios. Porém, vou retratar-me, porque sei que, com a minha cadeira de rodas, facilmente posso pisar o risco que delimita o meu propósito. E, por causa disso, ser entendida como alguém que faz o que faz, profissionalmente, para ser aplaudida como um grande exemplo de superação! A linha é ténue, mas a minha esperança é que as palavras tragam claridade à leitura que fazem de mim.
Enquanto palestrante (public speaker, se preferirem) sei que tenho acesso prioritário à plateia que tenho à minha frente, em matéria de atenção. Não preciso de estudar ou aplicar as teorias dos primeiros sete segundos, basta-me aparecer. Talvez esta seja mesmo a única ocasião em que me aproveito da minha deficiência visível. Porque, depois, é a história que vou contar que tem de ter poder, nunca o meu ego disfarçado de coitadismo. A mensagem é que tem de ser o centro, não a mensageira. Ora, se chegar aos outros facilmente é uma mais-valia minha, e da minha deficiência, já permanecer, na garantia de que eles entendem a mensagem que quero transmitir, é bem mais desafiador.
Sou uma pessoa com uma deficiência motora congénita. Desloco-me numa cadeira de rodas e, segundo o Estado, tenho 95% de incapacidade. Segundo a minha impressão digital, tenho 100% de capacidade para ser exatamente quem sou, pelo valor que possuo enquanto ser humano — e é isso que tantas vezes parece difícil de aceitar para quem olha para mim em cima de um palco. Na maioria dos casos, só me apercebo disso pelo feedback. Quando um desconhecido — quase sempre bem intencionado — transforma o meu simples ato de existir numa espécie de lição de moral para si próprio. Quando alguém me olha com aquele misto de pena, surpresa e inspiração heróica que só quem vive com rodas nos pés conhece. Chamar-me “força da natureza” não é um elogio, é desconforto. Pois há quem apelide de extraordinário o que eu vejo somente como representatividade no ordinário.
Por tudo isto é que, nos últimos anos, se tornou comum transformar pessoas com deficiência em motivational content. Vídeos virais de alguém “a conseguir viver apesar de tudo”. Textos enternecidos sobre como “é impressionante ver a força desta pessoa”. Fotografias partilhadas nas redes sociais com legendas do género: “E tu queixas-te da tua vida?”.
Eu não me exponho, não falo nem escrevo publicamente para ser uma motivação. A minha vida não existe para inspirar a ser mais produtivo. Não acordo de manhã para fazer alguém relativizar os seus problemas. Não enfrento as minhas barreiras pessoais para servir de espelho moral. A minha deficiência não é um palco. É uma condição humana — legítima, complexa, diária — que merece respeito, não romantização. Quando me transformam em motivação, retiram-me humanidade. Reduzem-me a metáfora. Ignoram o contexto, o cansaço, as dores, as burocracias, as exclusões subtis e explícitas que posso estar a atravessar. Reduzem tudo ao espetáculo emocional do “se ela consegue, eu também consigo”. Mas eu não existo publicamente para ser medida de coisa alguma. A minha intenção é que me olhem como uma pessoa. Pessoa inteira. Com desejos, rotinas, frustrações e falhas como qualquer outra. E a minha cadeira de rodas não é uma mascote motivacional, é apenas o que me permite deslocar-me, é um produto de apoio. É o meu corpo a viver de outra maneira, não o lembrete para alguém viver melhor.
E sim, há dias difíceis, menos bons ou irritantes. Há batalhas silenciosas com acessibilidades inexistentes, com decisões políticas ignoradas, com instituições que esquecem, com olhares que me atravessam. Mas nada disto precisa de ser pano de fundo para o teu “gratidão pelo que tenho”. Prefiro que seja pano de fundo para mudanças reais, práticas, estruturais.
Então, o que é que tu podes fazer para honrar a minha existência? Luta por cidades acessíveis. Questiona as barreiras arquitectónicas. Exige inclusão no emprego. Repara quando uma porta não abre, quando um serviço não inclui, quando uma decisão é tomada sem me consultar. Ensina as tuas crianças a ver diversidade sem hierarquia. E, sobretudo, abandona a ideia de que a deficiência é derrota pessoal ou superação obrigatória. A maior parte das coisas que faço, faço porque fazem parte do pacote integral da minha vida. Não é heroísmo. É humanidade. É prosseguir. É viver, não é sobreviver. E viver não é espetáculo, é dádiva. Por isso, se te inspiro — ótimo. Mas que seja porque te reconheces em mim enquanto pessoa, não por causa da minha aparência ou do que me está vedado. Porque somos diferentes, sim, mas não estamos em lados opostos da dignidade. E, se um dia eu puder motivar alguém, não é pela exceção em que me tentam colocar, mas por trazer verdade, bondade e beleza, com a oportunidade igual de ter uma voz. Esse é o meu motivo.
Que a minha deficiência não seja a tua motivação!
Que a minha deficiência seja apenas o motivo para que tu também queiras ser um promotor da inclusão.
E quanto à motivação? Que seja a minha humanidade o que te marca — porque isso, sim, é universal.
Mafalda Ribeiro assina um texto mensal no MOTIVO, a partir da sua visão e entendimento de pessoa com deficiência motora, a que chamou Acesso Prioritário.
Que a minha Deficiência não seja a tua Motivação!
#Motivação
Opinião

Mafalda Ribeiro assina um texto mensal no MOTIVO, a partir da sua visão e entendimento de pessoa com deficiência motora, a que chamou Acesso Prioritário.
Motivo e motivação são duas palavras relacionadas entre si, mas que não têm o mesmo significado. São complementares. Se o motivo é a razão que dá origem à ação, então a motivação é a força que move a pessoa a realizar essa ação. É, no fundo, o processo psicológico ou a ponte que liga o propósito à atitude. Ter um motivo, uma causa para fazer algo, não chega. É necessário ter uma força interior, ou seja, a motivação, para se pôr em movimento. A par disso, de nada serve estar motivado, ter essa força, se não existir um motivo ou uma razão que justifique avançar.
Vivemos num tempo em que as pessoas lêem livros, fazem cursos, vêem talks online e vão cada vez mais assistir a palestras motivacionais, à procura de receitas, lições ou estratégias para saber como ir de A a B, de preferência sem dar muito trabalho, e atingirem excelentes resultados. Não vou criticar quem o faz, como emissor ou recetor, porque hoje em dia há oradores e públicos para todos os gostos e feitios. Porém, vou retratar-me, porque sei que, com a minha cadeira de rodas, facilmente posso pisar o risco que delimita o meu propósito. E, por causa disso, ser entendida como alguém que faz o que faz, profissionalmente, para ser aplaudida como um grande exemplo de superação! A linha é ténue, mas a minha esperança é que as palavras tragam claridade à leitura que fazem de mim.
Enquanto palestrante (public speaker, se preferirem) sei que tenho acesso prioritário à plateia que tenho à minha frente, em matéria de atenção. Não preciso de estudar ou aplicar as teorias dos primeiros sete segundos, basta-me aparecer. Talvez esta seja mesmo a única ocasião em que me aproveito da minha deficiência visível. Porque, depois, é a história que vou contar que tem de ter poder, nunca o meu ego disfarçado de coitadismo. A mensagem é que tem de ser o centro, não a mensageira. Ora, se chegar aos outros facilmente é uma mais-valia minha, e da minha deficiência, já permanecer, na garantia de que eles entendem a mensagem que quero transmitir, é bem mais desafiador.
Sou uma pessoa com uma deficiência motora congénita. Desloco-me numa cadeira de rodas e, segundo o Estado, tenho 95% de incapacidade. Segundo a minha impressão digital, tenho 100% de capacidade para ser exatamente quem sou, pelo valor que possuo enquanto ser humano — e é isso que tantas vezes parece difícil de aceitar para quem olha para mim em cima de um palco. Na maioria dos casos, só me apercebo disso pelo feedback. Quando um desconhecido — quase sempre bem intencionado — transforma o meu simples ato de existir numa espécie de lição de moral para si próprio. Quando alguém me olha com aquele misto de pena, surpresa e inspiração heróica que só quem vive com rodas nos pés conhece. Chamar-me “força da natureza” não é um elogio, é desconforto. Pois há quem apelide de extraordinário o que eu vejo somente como representatividade no ordinário.
Por tudo isto é que, nos últimos anos, se tornou comum transformar pessoas com deficiência em motivational content. Vídeos virais de alguém “a conseguir viver apesar de tudo”. Textos enternecidos sobre como “é impressionante ver a força desta pessoa”. Fotografias partilhadas nas redes sociais com legendas do género: “E tu queixas-te da tua vida?”.
Eu não me exponho, não falo nem escrevo publicamente para ser uma motivação. A minha vida não existe para inspirar a ser mais produtivo. Não acordo de manhã para fazer alguém relativizar os seus problemas. Não enfrento as minhas barreiras pessoais para servir de espelho moral. A minha deficiência não é um palco. É uma condição humana — legítima, complexa, diária — que merece respeito, não romantização. Quando me transformam em motivação, retiram-me humanidade. Reduzem-me a metáfora. Ignoram o contexto, o cansaço, as dores, as burocracias, as exclusões subtis e explícitas que posso estar a atravessar. Reduzem tudo ao espetáculo emocional do “se ela consegue, eu também consigo”. Mas eu não existo publicamente para ser medida de coisa alguma. A minha intenção é que me olhem como uma pessoa. Pessoa inteira. Com desejos, rotinas, frustrações e falhas como qualquer outra. E a minha cadeira de rodas não é uma mascote motivacional, é apenas o que me permite deslocar-me, é um produto de apoio. É o meu corpo a viver de outra maneira, não o lembrete para alguém viver melhor.
E sim, há dias difíceis, menos bons ou irritantes. Há batalhas silenciosas com acessibilidades inexistentes, com decisões políticas ignoradas, com instituições que esquecem, com olhares que me atravessam. Mas nada disto precisa de ser pano de fundo para o teu “gratidão pelo que tenho”. Prefiro que seja pano de fundo para mudanças reais, práticas, estruturais.
Então, o que é que tu podes fazer para honrar a minha existência? Luta por cidades acessíveis. Questiona as barreiras arquitectónicas. Exige inclusão no emprego. Repara quando uma porta não abre, quando um serviço não inclui, quando uma decisão é tomada sem me consultar. Ensina as tuas crianças a ver diversidade sem hierarquia. E, sobretudo, abandona a ideia de que a deficiência é derrota pessoal ou superação obrigatória. A maior parte das coisas que faço, faço porque fazem parte do pacote integral da minha vida. Não é heroísmo. É humanidade. É prosseguir. É viver, não é sobreviver. E viver não é espetáculo, é dádiva. Por isso, se te inspiro — ótimo. Mas que seja porque te reconheces em mim enquanto pessoa, não por causa da minha aparência ou do que me está vedado. Porque somos diferentes, sim, mas não estamos em lados opostos da dignidade. E, se um dia eu puder motivar alguém, não é pela exceção em que me tentam colocar, mas por trazer verdade, bondade e beleza, com a oportunidade igual de ter uma voz. Esse é o meu motivo.
Que a minha deficiência não seja a tua motivação!
Que a minha deficiência seja apenas o motivo para que tu também queiras ser um promotor da inclusão.
E quanto à motivação? Que seja a minha humanidade o que te marca — porque isso, sim, é universal.