CRÍTICA: ‘NUREMBERGA’, a dissecação da mente nazi
#Motivação
Opinião

Protagonizado por Rami Malek e Russell Crowe, o realizador James Vanderbilt relembra os julgamentos de Nuremberga e a história do psiquiatra que recebe a tarefa de avaliar o estado mental dos réus, os comandantes do regime de Adolf Hilter.
Classificação: 4 estrelas
Ao assistirmos a dramas históricos sobre a IIª Guerra Mundial, é comum sairmos da sala de cinema com a sensação confortável de que estamos a observar um passado longínquo, devidamente encerrado nos livros de História, como se o passado tivesse um prazo de validade e as atrocidades contra os seres humanos tivessem parado após 1945. ‘NUREMBERGA’, o novo filme de James Vanderbilt sobre o julgamento das lideranças nazis desfaz essa ilusão logo nos primeiros minutos. Não só revisita o passado com um momento fundador da justiça internacional — que esteve na génese do conceito de “crimes contra a humanidade” — como estabelece paralelos incisivos com o presente ao instigar a reflexão sobre a instabilidade geopolítica, de retórica extremada, em que vivemos

Em vez de se focar no habitual enredo político-jurídico sobre um dos mais marcantes momentos do século XX – onde a grande referência cinematográfica é o clássico de Stanley Kramer, ‘O Julgamento de Nuremberga’, vencedor de dois Óscares em 1962, – Vanderbilt, opta por uma abordagem mais psicológica e centrada nos indivíduos. O cineasta - que já demonstrou ter mestria em abordar temas difíceis no grande ecrã (ou não fosse ele, o responsável pelo argumento de ‘Zodíaco’, o filme de David Fincher sobre um assassino em série que aterrorizou a Califórnia nos anos 60 e 70), apresenta um envolvente e bem representado retrato da banalidade do mal. Durante 148 minutos, confronta-nos com a realidade de como atos atrozes como genocídios em massa, não emergem de figuras inalcançáveis, mas de homens comuns insuflados por um sentido narcisista de grandeza e uma crença ideológica fanática.
Baseado no livro The Nazi and the Psychiatrist, de Jack El-Hai, o filme explora o lado psicológico do regime nazi, através da peculiar relação paciente-médico entre Herman Göring (Russel Crowe, numa das melhores performances da sua longa carreira), braço direito de Hitler e o mais importante nazi ainda vivo, e Douglas Kelly (Rami Malek), psiquiatra do exército norte-americano que, destacado para a cidade alemã que dá título à obra, está encarregue com a extraordinária tarefa de avaliar se os 22 líderes nazis detidos estão aptos para ir a julgamento. Kelly encarra esta missão com aparente idealismo, entusiasmado por “dissecar o mal” através dos testes psiquiátricos dos homens que ordenaram milhões de mortes, mas também não esconde o seu lado mais oportunista: ambiciona lucrar com a escrita de um livro que espelhe a proximidade inédita aos arquitetos do terror nazi.

Assim, enquanto os Aliados — liderados pelo procurador-geral dos EUA, o juiz Robert H. Jackson (Michael Shannon), o sargento Howie Triest (Leo Woodall), David Maxwell-Fyfe (Richard E. Grant), Gustave Gilbert (Colin Hanks), o coronel John Amen (Mark O'Brien) e Burton C. Andrus (John Slattery) — procuram constituir o primeiro tribunal internacional num edifício devoluto, Göring e Kelly mergulham num jogo intelectual do gato e do rato, que funciona como o motor dramático do filme, cujo combustível é a química singular dos dois já vencedores de um Óscar. Russel Crowe, o ator neozelandês que, em 2001, nos deu o herói romano Maximus, em ‘Gladiador’, interpreta agora com um carisma desconcertante, o segundo homem mais poderoso do regime nazi, onde a figura inchada associada à eloquência das palavras e um sentido de humor sarcástico, consegue por momentos, fazer-nos esquecer que estamos perante um homem que ordenou assassinatos em massa. A sua contracena é Rami Malek, que apesar de ter sido reconhecido com o Óscar como o Freddie Mercury em ‘Bohemian Rhapsody’, tem em Douglas Kelly, a personagem mais complexa da sua carreira: uma psiquiatra, aspirante a ilusionista, que apesar de inteligente é moralmente ambíguo, característica que o torna o isco prefeito para o seu “paciente” que o seduz com uma falsa vulnerabilidade alicerçada em partilhas pessoais.

A exploração desta tensa dinâmica faz com que ‘NUREMBERGA’ não se cinja ao mero género de drama histórico, e seja também uma metáfora do presente, uma demonstração de como, mesmo os mais literatos e instruídos (como Kelly), podem ser facilmente seduzidos e manipulados pelo poder da retórica e conduzidos a questionar os seus próprios valores. Uma situação ficcionada, que fez lembrar a frase do filósofo e historiador espanhol George Santayana, que é bem real: “uma nação que esquece o seu passado está condenada a revivê-lo no futuro”. Esta é uma das muitas citações que podemos encontrar gravadas ao visitar o memorial/museu de Auschwitz – Birkneau, o maior campo de concentração e extermínio da Alemanha nazi. É esse o propósito deste filme: não nos deixar esquecer.

Ainda assim, ‘NUREMBERGA’, não é perfeito. A sua longa duração, leva o argumento a apresentar frentes que não são totalmente narrativas, como a berrante falta de ética e sigilo profissional de Kelly, e o segmento dedicado ao julgamento carece de profundidade, reduzindo a relevância histórica e presença, tanto dos Aliados que ajudaram o juiz Jackson e tem apenas meia dúzia de frases, ou os outros 21 arguidos nazis que são absorvidos pela sombra da aura de Göring.
Contudo, apesar das fragilidades, é um filme ao estilo de Hollywood e com ambição a estar na rota dos Óscares. Basta ter em conta que, nos últimos anos, os membros da Academia têm sido recetivos ao reconhecimento de dramas históricos, que além de centrados na exploração de figuras reais – veja-se o exemplo de filmes como ‘Ainda Estou Aqui’ (2025), ‘Oppenheimer’ (2024) ou ‘O Discurso do Rei’ (2011) – pretendem, de forma clara, entreter, educar e provocar a reflexão dos espectadores. ‘NUREMBERGA’ é um filme sobre o passado, mas que se sente presente, necessário e urgente perante o atual o contexto sociopolítico. Num determinado momento da trama, Howard “Howie” Triest (Leo Woodwall), soldado norte-americano de origem judaica e tradutor de Kelly durante os testes psicológicos aos nazis, refere-se ao Holocausto, dizendo: “aconteceu aqui porque o povo fez acontecer, porque não se levantou até ser tarde de mais”. Ele está a referir-se à Alemanha dos anos 40, mas não é nessa época que pensamos ao ouvir essa frase. E Vanderbilt tem noção desse eco na audiência.
CRÍTICA: ‘NUREMBERGA’, a dissecação da mente nazi
#Motivação
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Protagonizado por Rami Malek e Russell Crowe, o realizador James Vanderbilt relembra os julgamentos de Nuremberga e a história do psiquiatra que recebe a tarefa de avaliar o estado mental dos réus, os comandantes do regime de Adolf Hilter.
Classificação: 4 estrelas
Ao assistirmos a dramas históricos sobre a IIª Guerra Mundial, é comum sairmos da sala de cinema com a sensação confortável de que estamos a observar um passado longínquo, devidamente encerrado nos livros de História, como se o passado tivesse um prazo de validade e as atrocidades contra os seres humanos tivessem parado após 1945. ‘NUREMBERGA’, o novo filme de James Vanderbilt sobre o julgamento das lideranças nazis desfaz essa ilusão logo nos primeiros minutos. Não só revisita o passado com um momento fundador da justiça internacional — que esteve na génese do conceito de “crimes contra a humanidade” — como estabelece paralelos incisivos com o presente ao instigar a reflexão sobre a instabilidade geopolítica, de retórica extremada, em que vivemos

Em vez de se focar no habitual enredo político-jurídico sobre um dos mais marcantes momentos do século XX – onde a grande referência cinematográfica é o clássico de Stanley Kramer, ‘O Julgamento de Nuremberga’, vencedor de dois Óscares em 1962, – Vanderbilt, opta por uma abordagem mais psicológica e centrada nos indivíduos. O cineasta - que já demonstrou ter mestria em abordar temas difíceis no grande ecrã (ou não fosse ele, o responsável pelo argumento de ‘Zodíaco’, o filme de David Fincher sobre um assassino em série que aterrorizou a Califórnia nos anos 60 e 70), apresenta um envolvente e bem representado retrato da banalidade do mal. Durante 148 minutos, confronta-nos com a realidade de como atos atrozes como genocídios em massa, não emergem de figuras inalcançáveis, mas de homens comuns insuflados por um sentido narcisista de grandeza e uma crença ideológica fanática.
Baseado no livro The Nazi and the Psychiatrist, de Jack El-Hai, o filme explora o lado psicológico do regime nazi, através da peculiar relação paciente-médico entre Herman Göring (Russel Crowe, numa das melhores performances da sua longa carreira), braço direito de Hitler e o mais importante nazi ainda vivo, e Douglas Kelly (Rami Malek), psiquiatra do exército norte-americano que, destacado para a cidade alemã que dá título à obra, está encarregue com a extraordinária tarefa de avaliar se os 22 líderes nazis detidos estão aptos para ir a julgamento. Kelly encarra esta missão com aparente idealismo, entusiasmado por “dissecar o mal” através dos testes psiquiátricos dos homens que ordenaram milhões de mortes, mas também não esconde o seu lado mais oportunista: ambiciona lucrar com a escrita de um livro que espelhe a proximidade inédita aos arquitetos do terror nazi.

Assim, enquanto os Aliados — liderados pelo procurador-geral dos EUA, o juiz Robert H. Jackson (Michael Shannon), o sargento Howie Triest (Leo Woodall), David Maxwell-Fyfe (Richard E. Grant), Gustave Gilbert (Colin Hanks), o coronel John Amen (Mark O'Brien) e Burton C. Andrus (John Slattery) — procuram constituir o primeiro tribunal internacional num edifício devoluto, Göring e Kelly mergulham num jogo intelectual do gato e do rato, que funciona como o motor dramático do filme, cujo combustível é a química singular dos dois já vencedores de um Óscar. Russel Crowe, o ator neozelandês que, em 2001, nos deu o herói romano Maximus, em ‘Gladiador’, interpreta agora com um carisma desconcertante, o segundo homem mais poderoso do regime nazi, onde a figura inchada associada à eloquência das palavras e um sentido de humor sarcástico, consegue por momentos, fazer-nos esquecer que estamos perante um homem que ordenou assassinatos em massa. A sua contracena é Rami Malek, que apesar de ter sido reconhecido com o Óscar como o Freddie Mercury em ‘Bohemian Rhapsody’, tem em Douglas Kelly, a personagem mais complexa da sua carreira: uma psiquiatra, aspirante a ilusionista, que apesar de inteligente é moralmente ambíguo, característica que o torna o isco prefeito para o seu “paciente” que o seduz com uma falsa vulnerabilidade alicerçada em partilhas pessoais.

A exploração desta tensa dinâmica faz com que ‘NUREMBERGA’ não se cinja ao mero género de drama histórico, e seja também uma metáfora do presente, uma demonstração de como, mesmo os mais literatos e instruídos (como Kelly), podem ser facilmente seduzidos e manipulados pelo poder da retórica e conduzidos a questionar os seus próprios valores. Uma situação ficcionada, que fez lembrar a frase do filósofo e historiador espanhol George Santayana, que é bem real: “uma nação que esquece o seu passado está condenada a revivê-lo no futuro”. Esta é uma das muitas citações que podemos encontrar gravadas ao visitar o memorial/museu de Auschwitz – Birkneau, o maior campo de concentração e extermínio da Alemanha nazi. É esse o propósito deste filme: não nos deixar esquecer.

Ainda assim, ‘NUREMBERGA’, não é perfeito. A sua longa duração, leva o argumento a apresentar frentes que não são totalmente narrativas, como a berrante falta de ética e sigilo profissional de Kelly, e o segmento dedicado ao julgamento carece de profundidade, reduzindo a relevância histórica e presença, tanto dos Aliados que ajudaram o juiz Jackson e tem apenas meia dúzia de frases, ou os outros 21 arguidos nazis que são absorvidos pela sombra da aura de Göring.
Contudo, apesar das fragilidades, é um filme ao estilo de Hollywood e com ambição a estar na rota dos Óscares. Basta ter em conta que, nos últimos anos, os membros da Academia têm sido recetivos ao reconhecimento de dramas históricos, que além de centrados na exploração de figuras reais – veja-se o exemplo de filmes como ‘Ainda Estou Aqui’ (2025), ‘Oppenheimer’ (2024) ou ‘O Discurso do Rei’ (2011) – pretendem, de forma clara, entreter, educar e provocar a reflexão dos espectadores. ‘NUREMBERGA’ é um filme sobre o passado, mas que se sente presente, necessário e urgente perante o atual o contexto sociopolítico. Num determinado momento da trama, Howard “Howie” Triest (Leo Woodwall), soldado norte-americano de origem judaica e tradutor de Kelly durante os testes psicológicos aos nazis, refere-se ao Holocausto, dizendo: “aconteceu aqui porque o povo fez acontecer, porque não se levantou até ser tarde de mais”. Ele está a referir-se à Alemanha dos anos 40, mas não é nessa época que pensamos ao ouvir essa frase. E Vanderbilt tem noção desse eco na audiência.
CRÍTICA: ‘NUREMBERGA’, a dissecação da mente nazi
#Motivação
Opinião

Protagonizado por Rami Malek e Russell Crowe, o realizador James Vanderbilt relembra os julgamentos de Nuremberga e a história do psiquiatra que recebe a tarefa de avaliar o estado mental dos réus, os comandantes do regime de Adolf Hilter.
Classificação: 4 estrelas
Ao assistirmos a dramas históricos sobre a IIª Guerra Mundial, é comum sairmos da sala de cinema com a sensação confortável de que estamos a observar um passado longínquo, devidamente encerrado nos livros de História, como se o passado tivesse um prazo de validade e as atrocidades contra os seres humanos tivessem parado após 1945. ‘NUREMBERGA’, o novo filme de James Vanderbilt sobre o julgamento das lideranças nazis desfaz essa ilusão logo nos primeiros minutos. Não só revisita o passado com um momento fundador da justiça internacional — que esteve na génese do conceito de “crimes contra a humanidade” — como estabelece paralelos incisivos com o presente ao instigar a reflexão sobre a instabilidade geopolítica, de retórica extremada, em que vivemos

Em vez de se focar no habitual enredo político-jurídico sobre um dos mais marcantes momentos do século XX – onde a grande referência cinematográfica é o clássico de Stanley Kramer, ‘O Julgamento de Nuremberga’, vencedor de dois Óscares em 1962, – Vanderbilt, opta por uma abordagem mais psicológica e centrada nos indivíduos. O cineasta - que já demonstrou ter mestria em abordar temas difíceis no grande ecrã (ou não fosse ele, o responsável pelo argumento de ‘Zodíaco’, o filme de David Fincher sobre um assassino em série que aterrorizou a Califórnia nos anos 60 e 70), apresenta um envolvente e bem representado retrato da banalidade do mal. Durante 148 minutos, confronta-nos com a realidade de como atos atrozes como genocídios em massa, não emergem de figuras inalcançáveis, mas de homens comuns insuflados por um sentido narcisista de grandeza e uma crença ideológica fanática.
Baseado no livro The Nazi and the Psychiatrist, de Jack El-Hai, o filme explora o lado psicológico do regime nazi, através da peculiar relação paciente-médico entre Herman Göring (Russel Crowe, numa das melhores performances da sua longa carreira), braço direito de Hitler e o mais importante nazi ainda vivo, e Douglas Kelly (Rami Malek), psiquiatra do exército norte-americano que, destacado para a cidade alemã que dá título à obra, está encarregue com a extraordinária tarefa de avaliar se os 22 líderes nazis detidos estão aptos para ir a julgamento. Kelly encarra esta missão com aparente idealismo, entusiasmado por “dissecar o mal” através dos testes psiquiátricos dos homens que ordenaram milhões de mortes, mas também não esconde o seu lado mais oportunista: ambiciona lucrar com a escrita de um livro que espelhe a proximidade inédita aos arquitetos do terror nazi.

Assim, enquanto os Aliados — liderados pelo procurador-geral dos EUA, o juiz Robert H. Jackson (Michael Shannon), o sargento Howie Triest (Leo Woodall), David Maxwell-Fyfe (Richard E. Grant), Gustave Gilbert (Colin Hanks), o coronel John Amen (Mark O'Brien) e Burton C. Andrus (John Slattery) — procuram constituir o primeiro tribunal internacional num edifício devoluto, Göring e Kelly mergulham num jogo intelectual do gato e do rato, que funciona como o motor dramático do filme, cujo combustível é a química singular dos dois já vencedores de um Óscar. Russel Crowe, o ator neozelandês que, em 2001, nos deu o herói romano Maximus, em ‘Gladiador’, interpreta agora com um carisma desconcertante, o segundo homem mais poderoso do regime nazi, onde a figura inchada associada à eloquência das palavras e um sentido de humor sarcástico, consegue por momentos, fazer-nos esquecer que estamos perante um homem que ordenou assassinatos em massa. A sua contracena é Rami Malek, que apesar de ter sido reconhecido com o Óscar como o Freddie Mercury em ‘Bohemian Rhapsody’, tem em Douglas Kelly, a personagem mais complexa da sua carreira: uma psiquiatra, aspirante a ilusionista, que apesar de inteligente é moralmente ambíguo, característica que o torna o isco prefeito para o seu “paciente” que o seduz com uma falsa vulnerabilidade alicerçada em partilhas pessoais.

A exploração desta tensa dinâmica faz com que ‘NUREMBERGA’ não se cinja ao mero género de drama histórico, e seja também uma metáfora do presente, uma demonstração de como, mesmo os mais literatos e instruídos (como Kelly), podem ser facilmente seduzidos e manipulados pelo poder da retórica e conduzidos a questionar os seus próprios valores. Uma situação ficcionada, que fez lembrar a frase do filósofo e historiador espanhol George Santayana, que é bem real: “uma nação que esquece o seu passado está condenada a revivê-lo no futuro”. Esta é uma das muitas citações que podemos encontrar gravadas ao visitar o memorial/museu de Auschwitz – Birkneau, o maior campo de concentração e extermínio da Alemanha nazi. É esse o propósito deste filme: não nos deixar esquecer.

Ainda assim, ‘NUREMBERGA’, não é perfeito. A sua longa duração, leva o argumento a apresentar frentes que não são totalmente narrativas, como a berrante falta de ética e sigilo profissional de Kelly, e o segmento dedicado ao julgamento carece de profundidade, reduzindo a relevância histórica e presença, tanto dos Aliados que ajudaram o juiz Jackson e tem apenas meia dúzia de frases, ou os outros 21 arguidos nazis que são absorvidos pela sombra da aura de Göring.
Contudo, apesar das fragilidades, é um filme ao estilo de Hollywood e com ambição a estar na rota dos Óscares. Basta ter em conta que, nos últimos anos, os membros da Academia têm sido recetivos ao reconhecimento de dramas históricos, que além de centrados na exploração de figuras reais – veja-se o exemplo de filmes como ‘Ainda Estou Aqui’ (2025), ‘Oppenheimer’ (2024) ou ‘O Discurso do Rei’ (2011) – pretendem, de forma clara, entreter, educar e provocar a reflexão dos espectadores. ‘NUREMBERGA’ é um filme sobre o passado, mas que se sente presente, necessário e urgente perante o atual o contexto sociopolítico. Num determinado momento da trama, Howard “Howie” Triest (Leo Woodwall), soldado norte-americano de origem judaica e tradutor de Kelly durante os testes psicológicos aos nazis, refere-se ao Holocausto, dizendo: “aconteceu aqui porque o povo fez acontecer, porque não se levantou até ser tarde de mais”. Ele está a referir-se à Alemanha dos anos 40, mas não é nessa época que pensamos ao ouvir essa frase. E Vanderbilt tem noção desse eco na audiência.
CRÍTICA: ‘NUREMBERGA’, a dissecação da mente nazi
#Motivação
Opinião

Protagonizado por Rami Malek e Russell Crowe, o realizador James Vanderbilt relembra os julgamentos de Nuremberga e a história do psiquiatra que recebe a tarefa de avaliar o estado mental dos réus, os comandantes do regime de Adolf Hilter.
Classificação: 4 estrelas
Ao assistirmos a dramas históricos sobre a IIª Guerra Mundial, é comum sairmos da sala de cinema com a sensação confortável de que estamos a observar um passado longínquo, devidamente encerrado nos livros de História, como se o passado tivesse um prazo de validade e as atrocidades contra os seres humanos tivessem parado após 1945. ‘NUREMBERGA’, o novo filme de James Vanderbilt sobre o julgamento das lideranças nazis desfaz essa ilusão logo nos primeiros minutos. Não só revisita o passado com um momento fundador da justiça internacional — que esteve na génese do conceito de “crimes contra a humanidade” — como estabelece paralelos incisivos com o presente ao instigar a reflexão sobre a instabilidade geopolítica, de retórica extremada, em que vivemos

Em vez de se focar no habitual enredo político-jurídico sobre um dos mais marcantes momentos do século XX – onde a grande referência cinematográfica é o clássico de Stanley Kramer, ‘O Julgamento de Nuremberga’, vencedor de dois Óscares em 1962, – Vanderbilt, opta por uma abordagem mais psicológica e centrada nos indivíduos. O cineasta - que já demonstrou ter mestria em abordar temas difíceis no grande ecrã (ou não fosse ele, o responsável pelo argumento de ‘Zodíaco’, o filme de David Fincher sobre um assassino em série que aterrorizou a Califórnia nos anos 60 e 70), apresenta um envolvente e bem representado retrato da banalidade do mal. Durante 148 minutos, confronta-nos com a realidade de como atos atrozes como genocídios em massa, não emergem de figuras inalcançáveis, mas de homens comuns insuflados por um sentido narcisista de grandeza e uma crença ideológica fanática.
Baseado no livro The Nazi and the Psychiatrist, de Jack El-Hai, o filme explora o lado psicológico do regime nazi, através da peculiar relação paciente-médico entre Herman Göring (Russel Crowe, numa das melhores performances da sua longa carreira), braço direito de Hitler e o mais importante nazi ainda vivo, e Douglas Kelly (Rami Malek), psiquiatra do exército norte-americano que, destacado para a cidade alemã que dá título à obra, está encarregue com a extraordinária tarefa de avaliar se os 22 líderes nazis detidos estão aptos para ir a julgamento. Kelly encarra esta missão com aparente idealismo, entusiasmado por “dissecar o mal” através dos testes psiquiátricos dos homens que ordenaram milhões de mortes, mas também não esconde o seu lado mais oportunista: ambiciona lucrar com a escrita de um livro que espelhe a proximidade inédita aos arquitetos do terror nazi.

Assim, enquanto os Aliados — liderados pelo procurador-geral dos EUA, o juiz Robert H. Jackson (Michael Shannon), o sargento Howie Triest (Leo Woodall), David Maxwell-Fyfe (Richard E. Grant), Gustave Gilbert (Colin Hanks), o coronel John Amen (Mark O'Brien) e Burton C. Andrus (John Slattery) — procuram constituir o primeiro tribunal internacional num edifício devoluto, Göring e Kelly mergulham num jogo intelectual do gato e do rato, que funciona como o motor dramático do filme, cujo combustível é a química singular dos dois já vencedores de um Óscar. Russel Crowe, o ator neozelandês que, em 2001, nos deu o herói romano Maximus, em ‘Gladiador’, interpreta agora com um carisma desconcertante, o segundo homem mais poderoso do regime nazi, onde a figura inchada associada à eloquência das palavras e um sentido de humor sarcástico, consegue por momentos, fazer-nos esquecer que estamos perante um homem que ordenou assassinatos em massa. A sua contracena é Rami Malek, que apesar de ter sido reconhecido com o Óscar como o Freddie Mercury em ‘Bohemian Rhapsody’, tem em Douglas Kelly, a personagem mais complexa da sua carreira: uma psiquiatra, aspirante a ilusionista, que apesar de inteligente é moralmente ambíguo, característica que o torna o isco prefeito para o seu “paciente” que o seduz com uma falsa vulnerabilidade alicerçada em partilhas pessoais.

A exploração desta tensa dinâmica faz com que ‘NUREMBERGA’ não se cinja ao mero género de drama histórico, e seja também uma metáfora do presente, uma demonstração de como, mesmo os mais literatos e instruídos (como Kelly), podem ser facilmente seduzidos e manipulados pelo poder da retórica e conduzidos a questionar os seus próprios valores. Uma situação ficcionada, que fez lembrar a frase do filósofo e historiador espanhol George Santayana, que é bem real: “uma nação que esquece o seu passado está condenada a revivê-lo no futuro”. Esta é uma das muitas citações que podemos encontrar gravadas ao visitar o memorial/museu de Auschwitz – Birkneau, o maior campo de concentração e extermínio da Alemanha nazi. É esse o propósito deste filme: não nos deixar esquecer.

Ainda assim, ‘NUREMBERGA’, não é perfeito. A sua longa duração, leva o argumento a apresentar frentes que não são totalmente narrativas, como a berrante falta de ética e sigilo profissional de Kelly, e o segmento dedicado ao julgamento carece de profundidade, reduzindo a relevância histórica e presença, tanto dos Aliados que ajudaram o juiz Jackson e tem apenas meia dúzia de frases, ou os outros 21 arguidos nazis que são absorvidos pela sombra da aura de Göring.
Contudo, apesar das fragilidades, é um filme ao estilo de Hollywood e com ambição a estar na rota dos Óscares. Basta ter em conta que, nos últimos anos, os membros da Academia têm sido recetivos ao reconhecimento de dramas históricos, que além de centrados na exploração de figuras reais – veja-se o exemplo de filmes como ‘Ainda Estou Aqui’ (2025), ‘Oppenheimer’ (2024) ou ‘O Discurso do Rei’ (2011) – pretendem, de forma clara, entreter, educar e provocar a reflexão dos espectadores. ‘NUREMBERGA’ é um filme sobre o passado, mas que se sente presente, necessário e urgente perante o atual o contexto sociopolítico. Num determinado momento da trama, Howard “Howie” Triest (Leo Woodwall), soldado norte-americano de origem judaica e tradutor de Kelly durante os testes psicológicos aos nazis, refere-se ao Holocausto, dizendo: “aconteceu aqui porque o povo fez acontecer, porque não se levantou até ser tarde de mais”. Ele está a referir-se à Alemanha dos anos 40, mas não é nessa época que pensamos ao ouvir essa frase. E Vanderbilt tem noção desse eco na audiência.